O meu pai tocava sanfona. E, quando ia para os serviços da Orquestra Típica tocava para nós, já fardado e ao fundo das escadas, "As Lavadeiras". No meu pequeno de sete ou oito anos, instrumento, era aquele. A sanfona. Porque nas farras que o pai fazia nas adegas, fosse a "Samaritana" ou o "Malhão de Águeda", a sanfona deixava os convivas sem o pé no chão e com as mãos nas palmas.
O tio Américo nem peciosu de perguntar - Sanfona, como a do meu pai, é o que eu quero. Os tocadores de instrumentos tradicionais que a Orquestra Típica precisava, já rareavam, e o ti Américo criou a escola de música. bandolim para o Rogério e Bitocas e concertina para mim. Sim, concertina é que se chama, não é sanfona. Mas o meu pai dizia sanfona...
E o tio Américo, sem nunca ter tocado concertina, lá me ensinou; fez um mapa com as notas de cada botão, as músicas da Orquestra na estante e, pelo que ia ouvindo do meu toque, correcções fazia. E estreei na Orquestra Típica a saber tocar o "Vira de Cedrim" e pouco mais. o pai, ao lado, dava-me toques no braço, a chamar a atenção para os meus toques ao lado. Depois da pequena concertina veio uma nova de três carreiras. E veio também o convite do "Cancioneiro" e do "Cancioneiro Infantil" para dar uma ajuda na tocata. Mas não haviam partituras! Algumas músicas eram as mesmas da Orquestra mas, e as outras? Como é que vou tocá-las sem saber as notas? O Braz dizia - "Ouve, ouve que as notas estão lá!". E começaram a estar: os sons, os dedos e as notas no ouvido, na concertina e nas pautas.
Instrumento limitado, dizia-se, só dá para o folclore. Não será bem, assim, terei pensado. Os primeiros alunos da minha concertina foram cúmplices deste arrojamento:desengalfinharam os dedos para tocar comigo a "Aria" da Bach, a abertura da "Aida" de Verdi ou a "Aquarela Brasileira". Quantro concertinas desconstruíam o preconceito e construiam uma vontade nova para o instrumento. À época não me chegavam eventuais modelos a seguir: era conhecido o meio dos tocadores dos grupos folclóricos, mas desconhecido por completo o panorama do instrumento a nível internacional.
Até que veio a Évora o italiano Riccardo Tesi, com ele os contactos do inglês John KirkPatrick, do basco Kepa Junkera, os discos do francês Alain Pennec, do irlandês Jackye Daly, do brasileiro Renato Borghetti, do mexicano no Texas Flaco Jimenez, do russo Panoramenko, do Caboverdeano Kodé di Dona, os concertos da irlandesa Sharon Shannon, do colombiano António Rivas, e...
...e então percebi que a sanfona do meu pai era a minha concertina, era o organetto do Tesi, o diatonic accordion do kirkPatrick, a trikitixa do Kepa, o accordéon diatonique do Pennec, o melodeon do Daly, a gaita-ponto do Borghetti, o accordion tex-mex do Flaco, a garmochka do Panoramenko, a gaita de fole do Kodé...


Artur Fernandes

Enfim, uma cimeira do fole!...

O Artur Fernandes, um percursor dos novo caminhos da concertina em Portugal, ensina desde o início na d'Orfeu, tiques e toques do seu instrumento a pequenos alunos; muitos ainda sem força para pegar na mala da concertina, mas aprendem e tocam com vontade própria de imitar os ídolos que a d'Orfeu lhes alimenta.

A concertina do Artur toca, por exemplo... Piazzolla. As concertinas gostam sempre de tocar Piazzolla com a concertina do Artur. E com as mesmíssimas notas com que tocam o Malhão de Águeda. É por isso mesmo que nesta sala, fizemos questão que estivesse um grande número de tocadores dos grupos folclóricos do concelho, envolvendo-os na dinâmica de um movimento musical universal do qual também fazem parte.
Que história é essa de se dizer que andam p'raí concertinas a tocas o que não devem?...

Faz-se a história da d'Orfeu de alentos e de sonhos, de andar há seis anos em Águeda a tocar o que não se deve. Vivemos todos os dias esta ilusão de sediar em Águeda o universo.
A seguir à nossa crença, o público foi o primeiro a chegar. O público sentou-se sempre na fila da frente.
1995: o início do pânico na anti-cultura; ele é formação em músicas tradicionais, ele é mobilidade europeia, ele é arrojo estético, ele é criação e difusão, ele é... ele é promoção da arte, da música, ele é sedução... Proposta sedutora, esta d'Orfeu.
1999, primeira edição do Festival O Gesto Orelhudo, a menina dos nossos olhos: autarquia retira subsídio e manda "limpar" todos os cartazes das ruas. Segue-se uma mobilização popular até aí invulgar em eventos culturais em Águeda.
Em Julho de 2000, a associação enlouqueceu outra vez: lançou-se a uma programação ininterrupta de 31 dias, durante todo o mês de Julho. O Espaço d'Orfeu, na Venda Nova, albergou todos os dias este mar de cumplicidades que nos inunda. E em Águeda, passava a viver-se efectivamente, ao fim de cinco anos, todos os dias, o encanto de uma vivência cultural.
Já estava instituído o estado de festa em Águeda no ano passado, quando aconteceram a segunda edição dO Gesto Orelhudo, o d'Orfusão, o Ciclo Isto É Trigo Limpo, o Ciclo Os CantAutores, a Saga Cigana, oo OuTonalidades... O pânico dos isntalados comodismos já andava em fases de agonia terminal...
Este ano - hoje são 8 de Fevereiro de 2002 - somos serviço público de cultura. Estamos na abertura da Cimeira do Fole. Uma abertura "oficiale", que anuncio assim em tom grave, para me crer fazer crer que isto é mesmo verdade.
A ser mesmo verdade, para o nosso público em termos locais, isto representa uma legítima expectativa de emancipação cultural e promove, como vêm, Águeda como destino cultural. Nesta sala, sabemo-lo, está presente público de todo o norte do país - (mas) quem é que não está hoje aqui presente? - muitas destas pessoas estão hoje em Águeda pela primeira vez, por motivos, pasme-se, culturais.

É que os objectivos de diferença e inovação são ainda uma missão, deixem lá dizer-vos, algo ingrata de se cumprir em Águeda. A comunidade, está visto, está sedenta e tem sido a maior causa, mas ainda sentimos na pele o prurido de uma qualquer aversão, aqui e ali, para com esta nova realidade, já lá vão seis anos!!
Eh pah!... são cidadãos em esforços desumanos quem constroem este prazer colectivo, da mesma maneira que, persistentemente, vêm pondo de pé este empreendimento chamado d'Orfeu. Esforços, repito, desumanos.

Compreende-se que, não tendo existido um passado que nos legasse a experiência de grandes apoios manifestos e iniciativas culturais de impacto nesta cidade, seja este obviamente um terreno virgem e que o poder decisório não se atreva a dar definitivamente o passo em frente.
Os subsídios culturais já vão tendo alguns zeros, mas têm que ser convertidos agora em euros. Talvez mantendo os zeros... Já não pode é ser desajustado pensar que Águeda pode crescer em qualidade de vida sem um investimento cultural de alto nível. Permanente e arrojado, para não deixar perder os comboios todos. Andamos a fazer tudo por vir a apanhar esses comboios nesta terra. Em 2002, da nossa parte, vamos reforçar a dose e, mais uma vez, não medimos o atrevimento e a ousadia. Todos os dias, continuaremos a desbravar os caminhos que parecem interessar a parte significativa do colectivo aguedense.

Na d'Orfeu, os tais "todos os dias" são intensos, muito intensos.
Também há dias que são chorados.
É que dentro dos sonhos, o choro e o riso sempre se confundiram. Tal como se confunde com o nosso choro destes dias recentes, o riso do arquitecto, ele, das longas e assíduas companhias ao trabalho de todos na d'Orfeu, onde nos procurava e o encontrávamos. Com ele, sentiamo-nos arquitectos herdeiros de cultura.
Uma jovialidade! É essa jovialidade. Obstinados, duros como Rocha.
Carneiro é o retrato que adoptamos de animal cultural.

Temos ídolos sim, arquitectos ídolos tanto à porta de casa como à porta do mundo. Com a Cimeira do Fole que hoje arranca, queremos agora fazê-los cá passar, ter cá motivos para receber a sua genialidade, eles que sempre estiveram na nossa música, verdadeiros mestres, invariavelmente compactados em disco, longamente passados na aula da d'Orfeu. Fole sim, fole sim, fole não, muitos deles connosco estarão ao vivo este ano em Águeda. Kepa - esse terrorista da trikitixa - é já hoje, estamos no seu palco; ele está no nosso.
Em Março, segundo momento da Cimeira: no CEFAS, o brasileiro Renato Borghetti, mestre maior da gaita-ponto vai "querê nos arrebatá" com o encanto desta "Mercedita"... do género "abrir o apetite", aqui tocado por três gerações da concertina na d'Orfeu - o mestre Artur Fernandes, a mestre Mara Abrantes e a amestrada destreza da infância musical da Rita Pinho.
O fole ganha aqui compromisso esta noite, nesta plateia de Águeda, nesta plateia cimeira do mundo. Suplicamos o progressivo aproveitamento criativo da concertina para todos os géneros musicais, num cenário tanto mais universalista quanto identificado com a nossa riqueza tradicional e folclórica; este é o discurso-ponte vindo a praticar pela d'Orfeu. É só esse o nosso lugar.

2002... que nos desculpem, mas está decidido: serão os génios do dedo, muitos deles ocultos, a marcar o nosso ano cultural; será altura de a concertina cometer todos os sacrilégios. Concertina ou... Garmochka ou Trikitixa ou Organetto ou Melodon ou gaita-Ponto ou...sejam quais forem os paladares dos foles que hão-de vir a Águeda. Quer é ser este, um festival de relações afectivas entre músicas e instrumentos.

Todos faremos a Cimeira do Fole! O risco que corremos é proporcional ao esforço que fazemos; queremos é continuar a vê-lo compensado no brilho dos olhos do público. Vamos pensar que nesta terra todos os sonhos se concertinam...

Luís Fernandes